domingo, 27 de julho de 2025

Quando a fé distorcida leva um povo a cuspir no próprio reflexo

 

Enquanto ele debochava, nós perdíamos quem amávamos...

   Demorei a escrever, não por falta de vontade, mas porque esse assunto me corrói pelas camadas de absurdo e dor que carrega. São anos de frustração engasgada, desde que o país começou a despencar moralmente em 2018.

   Apesar do que se ouve com frequência, acredito que ainda existam políticos honestos. Homens públicos como o Olívio Dutra e o inesquecível Pepe Mujica provam que é possível envelhecer sem fortuna, sem escândalos, apenas com dignidade. Infelizmente, os que se destacam pelo barulho e pela corrupção fazem a política parecer uma cesta de ovos podres. Mas enquanto os podres gritam, os íntegros permanecem firmes e silenciosos, honrando os votos e a confiança que um dia receberam do seu povo.

   Não consigo aceitar que, depois de toda essa encenação ― desde a famigerada 'fakeada' ― ainda haja quem defenda o clã Bolsonaro com fervor. A linha invisível que liga Adélio Bispo a um clube de tiros caro, cheio de lacunas mal explicadas, continua sendo ignorada por quem escolhe acreditar no que convém. E me pergunto: por que o Messias, tão agressivo com mulheres, pessoas pretas, LGBTQIA+ e tantos outros, jamais demonstrou verdadeira revolta contra aquele que teria atentado contra sua vida? A resposta talvez não esteja no que ele diz, mas no que escolhe silenciar. Diante dessa premissa, chamo atenção para os dois “ungidos”, pelo sobrenome grifado, que fingem ser luz, quando na verdade são sombras com discursos ensolarados. Não. Eu nunca acreditei naquela falácia teatral.

   Convenhamos: alguém que inicia sua carreira política tentando explodir o quartel onde servia, talvez carregue consigo uma bagagem emocional, digamos, pouco estável. O fetiche por armas, militares, motociatas e jet-skis — sempre cercado por homens — poderia ser tema de uma tese de psicanálise. Freud certamente se divertiria. Quem sabe as muitas uniões não foram tentativas desesperadas de conter um grito interno, sufocado pela performance viril? Nessa encenação de força, há quem veja apenas o reflexo de uma fragilidade não confessada.

   Nesse momento, eu o convido a parar por um minuto, em silêncio. Se você se considera cristão, pense: Jesus foi torturado, humilhado, crucificado. Sua dor é o alicerce da sua fé. Como, então, apoiar alguém que homenageia um torturador como Brilhante Ustra? 

   Ainda me lembro bem da pandemia, quando o então presidente ironizou o sofrimento de quem não conseguia respirar. Foi impossível não pensar na minha mãe, que em 2014 lutou para encher os pulmões pela última vez, vítima da H1N1. Eu testemunhei seu desespero, buscando ar, chamando por mim, antes de ser levada à UTI. Dois dias depois, ela se foi. A dor é real, e o deboche nunca deveria ter espaço onde falta compaixão.

   Voltando aos fatos, amplamente registrados em vídeos públicos, Bolsonaro já afirmou que nasceu para matar. Fez piadas sobre zoofilia e ainda relatou, com orgulho nauseante, que flertou com meninas venezuelanas, pois “pintou um clima”, segundo ele, durante um passeio de moto. Na mente onde os neurônios parecem ter sido substituídos por vermes, um senhor de 70 anos paquerando adolescentes é normal, afinal, ele se acha irresistível. A cena é grotesca e real. E como se todas as sandices já não bastassem, esse projeto malformado de homem declarou, em alto e bom som, que sonegava tudo o que podia. Afirmou que, numa guerra, a morte de 30 mil seria apenas um “efeito colateral”. É impossível esquecer que esse sujeito já apontou o dedo na cara de uma mulher, afirmando que ela, por não se enquadrar em seus padrões de beleza, não mereceria sequer ser estuprada. Como se isso fosse mérito, e não monstruosidade. E continuando sua trilha de preconceito escancarado, disse à Preta Gil que seus filhos não namorariam pessoas negras nem seriam gays, porque, conforme ele, foram bem educados. O quê? Bastaria essa única declaração dele para me causar repúdio. O resto apenas confirma o que sempre esteve evidente: o preconceito não está na manchete, está nas entrelinhas, visível  a quem  sabe interpretar texto.

   Essa criatura nefasta, em sua essência venenosa, transferiu, pelo mau exemplo e DNA, à prole ardilosa a mesma disposição para o entreguismo. Eles não hesitam, parecem prontos até a negociar o próprio país com o imperialismo americano. As evidências públicas indicam um interesse escancarado dos Estados Unidos sobre nossas riquezas minerais, como se fossem deles por direito. Se isso não for traição à pátria, então o conceito perdeu seu sentido.

   Se mesmo assim você continua firme, pleno, defendendo esse ser caricato, cruel e abjeto com seu linguajar chulo e medíocre, que vive destilando ódio, e que recentemente chamou seus próprios seguidores fanáticos de malucos, num raro momento de sinceridade, só posso concluir que você é igual a ele. O único “amor” dessa figura se restringe aos filhos, seus clones políticos, e ao Trump, um personagem cercado por escândalos de pedofilia, ex-aliado do infame Jeffrey Epstein, cuja morte, ainda hoje, cheira a queima de arquivo.

   Contudo, compreendo sua resistência. Afinal, é mais fácil se abrigar nos grupos de WhatsApp do que romper esse casulo feito de ignorância. Enredado por mentiras habilmente distribuídas pela família Bolsonaro, você acaba mergulhado em uma realidade paralela onde fake news são norma. E nisso, admitamos, eles são mestres. Se ainda assim restar alguma dúvida, olhe para a turba que idolatra o seu “mito”: gente que só briga por interesses próprios e nunca pela coletividade. Não promovem igualdade, nem respeito ou dignidade, porque, para eles, você não tem valor. Como já declarou com desdém o dito cujo certa vez: “Só tem uma utilidade o pobre no nosso país aqui: votar. Título de eleitor na mão e diploma de burro no bolso para votar no governo que está aí.”

   E foi o sucesso do clã Bolsonaro, ao disseminar mentiras e propagar o ódio, que abriu caminho para que outros políticos da mesma estirpe surfassem confortavelmente na mesma onda. Essa estratégia encontrou abrigo numa parcela expressiva da população, carente de consciência de classe e que passou, paradoxalmente, a atacar justamente aqueles que defendem seus direitos. A esses, os bolsonaristas rotularam de “comunistas”, sem sequer compreender o real significado da palavra. Afinal, sua lógica tem a profundidade de um pires.

  Que fique claro: não estou classificando ninguém por inteligência, mas por discernimento e generosidade. É impossível, por qualquer fundamento sensato, rezar para Deus e para pneus ao mesmo tempo. Assim como é completamente irracional entrar num templo sagrado empunhando arminhas com as mãos ou gritando pelo demônio. Fé não sobrevive à contradição moral.

     Lutar por justiça social é, antes de tudo, reconhecer o outro como igual, mesmo quando está longe, mesmo quando pensa diferente de nós. A incoerência de pregar com a Bíblia em mãos enquanto se deseja a morte revela o abismo moral de uma sociedade adoecida.  A verdade é que, se aquele plano obscuro de 8 de janeiro tivesse se concretizado, hoje não estaríamos debatendo ideias, estaríamos sendo silenciados. Não pela justiça… mas pela tortura.

   E, se, após tudo o que foi dito, você ainda defende uma ideologia conspiratória que atenta contra uma democracia arduamente conquistada, então é preciso encarar a realidade: você compactua com a tortura, com abusos, com preconceitos que dilaceram nossa humanidade. Porque não há neutralidade possível diante de quem nomeou para proteger o meio ambiente um ministro que tinha óbvias intenções em destruí-lo. E, nessa “natureza” perversa que alguns seguem, ignorando o próprio reflexo, sobra aos que enxergam o horror estampado na figura patética que hoje se faz de vítima, mas antes se vangloriava de ser imbroxável.  

  Finalizo este texto por aqui, embora pudesse facilmente escrever um livro inteiro sobre as atrocidades cometidas por esse sujeito, e digo com a autoridade de quem observa, há anos, tudo isso de fora do curral. A verdade é que Bolsonaro me embrulha o estômago. Um homem que, em vez de usar tornozeleira eletrônica, deveria estar dividindo cela com os cúmplices da destruição nacional. E se, mesmo depois de tudo o que você leu ― fatos amplamente registrados, documentados e escancarados ― ainda assim insiste em bater continência para a bandeira americana e defender o indefensável, então, por favor, tenha ao menos a decência de construir argumentos sólidos. Seja honesto, coerente e minimamente inteligente. Porque, no fundo, o que está em jogo não é apenas uma opinião política, é a sua dignidade diante do espelho.

  Aproveito para deixar aqui duas perguntas, que talvez provoquem alguma reflexão: em que Deus você realmente acredita? Para quem, afinal, você se ajoelha diante do altar quando apoia esse ser execrável? 


sábado, 19 de julho de 2025

Enquanto você silencia, seus filhos herdam cinzas

 

    

    
Anote o nome de quem votou contra a vida
   Começo este texto perguntando: onde foi parar o bom senso, a empatia e a consciência ambiental dos políticos que compõem o Congresso Nacional? Esse Congresso, que merecidamente carrega a alcunha de Inimigo do Povo, parece ter enterrado qualquer resquício de decência. Não é possível que, diante de tantos sinais da natureza: enchentes, secas, queimadas, deslizamentos, aqueles que deveriam representar os interesses de quem os elegeu estejam compactuando com um sistema podre, que só sabe propagar a destruição do país. O projeto de lei “PL 2.159/2021”, apelidado por ambientalistas de PL da Devastação, traz em si o prenúncio do caos: mais desmatamento, mais tragédias, mais morte.

   O projeto abjeto, votado na calada da noite, num típico ato de quem tem muito a ganhar quando o povo tem tudo a perder, flexibiliza o sistema de licenciamento ambiental no Brasil e permite que o empreendedor apenas autodeclare que não causará danos.
Sem fiscalização. Sem estudo técnico. Sem consulta às comunidades afetadas. Só lucro e destruição. Quem paga a conta?

  •    Povos tradicionais, como indígenas, quilombolas, ribeirinhos e comunidades rurais — especialmente os que vivem em territórios ainda em processo de demarcação.
  •    Você e eu, que moramos em áreas urbanas vulneráveis, cada vez mais ameaçadas por enchentes, deslizamentos e ilhas de calor.
  •   O planeta inteiro, cuja biodiversidade se vê sufocada por interesses imediatistas e irresponsáveis.

    Com as mudanças climáticas batendo à porta, já não há refúgio. As cinzas que hoje cobrem a Amazônia amanhã estarão nos nossos pulmões. As enxurradas que ontem arrastaram e alagaram milhares de casas no Sul, logo ameaçarão outras regiões, até chegarem ao seu quintal. Então, fica o alerta: os extremos do clima não pouparão ninguém. Ciclones, queimadas, estiagens severas... vêm para todos.

   E, enquanto isso, os deputados que votaram essa barbárie seguem fazendo conchavos com o agronegócio predatório e a mineração criminosa, amparados por partidos que abandonaram qualquer compromisso com o futuro coletivo. Por isso, anote os nomes desses traidores. Grave os partidos que rasgam a Constituição e rifam a natureza. Guarde essa lista em algum lugar relevante, para jamais esquecer. Porque, na próxima eleição, você terá a chance de romper — ou renovar — o contrato com quem trocou sua vida por votos e poder.

  Com esse simples ato, você pode redefinir o futuro dessa geração que por aqui está chegando, dando-lhe uma chance de seguir com esperança. Porque, diante da degradação irreversível e da pressão crescente sobre os biomas nacionais: Amazônia, Cerrado, Pantanal e Caatinga, caso o PL avance, o planejamento familiar perderá o sentido, se o futuro for incerto. Não podemos deixar como herança essa promessa de colapso ambiental àqueles que não têm culpa, se nós não soubermos escolher nossos representantes. O PL ainda pode ser barrado. Depende do veto presidencial. Mas, se avançar, prepare-se: há uma grande chance de nos tornarmos refugiados climáticos em nossa própria terra. E a próxima geração perguntará: “Por que nos calamos?”

  Não se trata de ideologia política, mas de sobrevivência. Enquanto os ricos constroem bunkers climatizados para resistir à catástrofe, nós, o povo, herdaremos apenas as cinzas. Então, se não for pelos povos originários, pelos rios, pelas florestas e pelos animais... que seja por você mesmo, caso acredite em reencarnação. Por que você quer renascer em um planeta arrasado? 

   Acorde. Exija o veto. E, no dia das urnas, enterre os canalhas que trocaram o seu futuro por lucro. 

*Procure no seu estado por aqueles que votaram a favor da devastação.

terça-feira, 15 de julho de 2025

Entre Banheiras e Remakes

 

        Como afundar ainda mais a audiência

   A maioria daqueles que têm mais de 40 anos lembra com nitidez que a TV brasileira reinava absoluta na terra do “Plim-Plim”. Auditórios lotados, novelas diárias, programas humorísticos e enlatados estrangeiros compunham a receita perfeita para preencher o tempo ocioso de milhões de espectadores. Os mais exigentes, no entanto, podiam optar por livros, cinema, teatro ou até uma boa roda de conversa entre amigos e parentes. E assim, por décadas, a televisão manteve o seu auge. Mas o tempo mudou... e a televisão parou no tempo.

   Com o advento da internet e, mais recentemente, com a facilidade proporcionada pelos serviços de streaming, todas as emissoras de canais abertos passaram a sentir o retrogosto de um público cada vez mais insatisfeito com a programação, o que deu início à queda na audiência. Agora, o telespectador tem o poder de escolher o que, quando e como assistir. Em consequência disso, os anunciantes, antes numerosos e generosos, passaram a fugir desse modelo ultrapassado. Seguindo o comportamento do consumidor, redirecionaram seus ovos de ouro para outras plataformas.

    Diante disso, o desespero bateu. E, como já dizia o “Velho Guerreiro”: “Na televisão, nada se cria, tudo se copia”. Vem daí essa propagação de remakes e revivals, como se a criatividade tivesse sido sepultada na década passada. É sempre o mais do mesmo. E o resultado disso é a enxurrada de roteiros empobrecidos e previsíveis, quando não beiram a linha tênue do plágio.

     É preciso entender que essa geração não quer perder tempo e nem tolera a hipocrisia, o que a faz buscar coerência, respeito e autenticidade, além de excelência na qualidade daquilo que consome. Não se deixa prender por modelos de programação decadentes, que prometem tudo, mas não entregam nada.

   Percebendo que a audiência se fragmentou, as emissoras de televisão, em vez de investirem no inédito, recorrem a programas engessados, há muito considerados ultrapassados. Enquanto isso, a internet vai expandindo seu território e conquistando a confiança daqueles que buscam assistir a algo verdadeiramente interessante e autêntico.

  Na tentativa desenfreada por uma retomada significativa da audiência e indo na contramão do que prega o bom senso, parece que o SBT ainda não entendeu que entramos em um novo milênio. A emissora tem abraçado youtubers, contratado influenciadores, sem seguir uma linha coerente com a própria identidade, passando a atirar para todos os lados. E vem aí o tiro de misericórdia: a ressurreição da famigerada Banheira do Gugu.
. Um programa pífio, sem graça e extremamente apelativo, onde o corpo da mulher é objetificado de forma explícita e vergonhosa. Nos dias atuais, não por moralismo, mas por consciência, o público rejeita esse tipo de entretenimento de massa. Cada vez mais, a ingestão desse modelo decadente provoca repúdio nos mais jovens que não toleram o machismo disfarçado de diversão e sabem que há milhares de opções à distância de um clique.

   Se a televisão brasileira quiser sobreviver com relevância, precisará, antes de tudo, respeitar a inteligência de seu público. E, acima de tudo, aceitar que o controle mudou de mãos ― e essas mãos não toleram mais a hipocrisia como única alternativa.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

De lágrimas a alagamentos: Canoas entre a nova ameaça de enchente e a velha negligência política

 


    Já faz um longo tempo que venho adiando esta publicação — mais precisamente, um ano. Não por falta de assunto, mas por falta de coragem. Ainda é muito doloroso falar sobre a enchente da qual cerca de 60% dos moradores da cidade de Canoas — estatística da qual faço parte — foram vítimas.

    E quando eu acreditava que a dor de perder tudo havia sido levada pelas águas lamacentas do passado recente, fui novamente surpreendida pela possibilidade de sermos, mais uma vez, atingidos pela força da correnteza dos rios que descem do centro do estado para desaguar nos já saturados Guaíba, Rio dos Sinos e Gravataí. A situação pode se agravar ainda mais com a grande quantidade de chuva prevista para os próximos dois dias.

  Todo esse volume certamente afetará os níveis de água e pode causar novas inundações, especialmente na parte oeste do município, cuja cota já está acima do normal. Mas, para não continuar “chovendo no molhado”, vou me ater ao lado psicológico dos habitantes — pessoas desanimadas, inseguras e, em sua maioria, completamente descrentes nos políticos que, de forma irresponsável, pouco ou nada fizeram para evitar que outra catástrofe volte a se repetir.

   Mal conseguimos nos recuperar do trauma de uma tragédia jamais imaginada, e agora estamos diante de outro desafio: em quem acreditar?

  A Defesa Civil emite alertas; a prefeitura afirma que devemos ficar atentos, mas garante que não há risco de algo tão catastrófico quanto o ocorrido no ano passado. Enquanto isso, vemos um embate entre os alarmistas que espalham pânico e os otimistas que tentam suavizar a situação com frases de efeito.

  No meio dessa queda de braço estamos nós, que já começamos a planejar uma possível fuga. Mas fugir... para onde? Montar uma logística de evacuação quando se tem cães, gatos, doentes, crianças e idosos é um verdadeiro dilema. Abrigos? E onde deixar os móveis e eletrodomésticos conquistados com tanto esforço ao longo de mais um ano de luta?

  Poucos imaginam o desespero dessa parcela da população, que representa aproximadamente 60% dos 350 mil habitantes, que vivem nos bairros Rio Branco, Fátima, Mato Grande, Harmonia, Mathias Velho, São Luiz e Industrial. Nessas regiões, arroios e rios cruzam os limites urbanos, contando com um sistema de diques e bombas de drenagem — que, até poucos anos atrás, parecia suficiente.

  Contudo, a especulação imobiliária desenfreada e a ganância de políticos e empresários resultaram no fechamento de nascentes e no desmatamento. Já uma parte da população também tem sua parcela de culpa, ao descartar de modo irresponsável o lixo doméstico e da construção civil em locais inapropriados, o que leva ao entupimento das bocas de lobo. Tudo isso contribui para a situação miserável e angustiante que enfrentamos hoje.

  A chuva, que um dia embalava nossos sonhos, agora provoca insônia e pânico. Mesmo aqueles que moram longe dos rios sentem a insegurança corroer qualquer desejo de continuar recomeçando. E mesmo que eu não volte a perder tudo, não sinto alívio. Porque saber que o outro está passando pelo que eu já passei só me traz apreensão e tristeza.

  No fim das contas, só podemos contar com quem está na mesma situação — na mesma Canoas furada, remando contra a correnteza da negligência e da falta de responsabilidade com o meio ambiente.
                        E assim seguimos... enxugando gelo.

terça-feira, 24 de junho de 2025

Grito Sem Voz: A literatura como escudo para quem não pode se defender

    
    Foi com revolta e tristeza que, em um intervalo inferior a um mês, li algumas notícias envolvendo crianças e adolescentes vítimas de violência sexual na cidade onde moro, que conta com uma população de cerca de 350 mil habitantes.

   Para quem me conhece, não é novidade que venho alertando sobre o perigo de ignorarmos o grito silencioso dos inocentes.
Vivemos tempos em que fake news são rapidamente validadas por quem só acredita no que lhe convém — enquanto verdades dolorosas continuam sendo “varridas” para debaixo do tapete. Até quando vamos permitir que essa covardia siga destruindo a vida de quem nem sempre consegue se defender?

   Como autora de dois livros que tratam, com responsabilidade e sensibilidade, de um tema tão doloroso quanto necessário, faço uma pergunta urgente: por que ainda não houve uma mobilização consistente para oferecer ao público infantojuvenil a principal defesa contra abusadores? O conhecimento.

   Diante disso, afirmo, convicta, que falar sobre esse assunto em casa e na escola é necessário e urgente. Precisamos criar espaços de diálogo que permitam que crianças e adolescentes se expressem com liberdade e segurança.

   Por isso, tenho me dedicado à criação de releituras contemporâneas inspiradas nos contos dos Irmãos Grimm, com o objetivo de me aproximar do público jovem — como forma de levar luz à escuridão que permeia a falta de informação, gerada pela ignorância de quem teme a verdade.

   Assim nasceu Chapeuzinho, Lobos Usam Internet, publicado pela Editora Sulina. Ainda este ano, lançarei Disque 100 – João e Maria: Muito além do conto de fadas, também pela Sulina, com previsão de lançamento oficial na Feira do Livro de Porto Alegre. Ambos os livros têm como intuito gerar debate e trazer um sopro de conhecimento a quem precisa.

  Com linguagem acessível e poética, a nova obra retrata uma realidade dura — mas, infelizmente, comum — que precisa ser enfrentada com coragem e informação.

Pais, professores, tios, avós, vizinhos, amigos: ajudem a romper o silêncio. Leiam. Conversem. Ensinem. Somente o conhecimento pode proteger os mais vulneráveis.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

A crise climática não perdoa governos que desmontam o meio ambiente...

       Agência Brasil/Gilvan Rocha
 
Vista da cidade inundada de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Texto: Amanda Werlang

       As enchentes históricas que atingiram o Rio Grande do Sul — com cenas de cidades submersas, mortes e milhares de desabrigados — não são apenas obra da natureza, mas resultado direto de decisões políticas que ignoraram o meio ambiente e a ciência.

    Em Porto Alegre, o prefeito Sebastião Melo vem conduzindo uma gestão marcada pela entrega de bens públicos ao setor privado e pelo desmonte das estruturas ambientais e urbanísticas da cidade. Um exemplo grave disso é a tentativa de privatização do DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgotos) — órgão que historicamente cuida da água e do esgoto da capital com caráter público e técnico.

    Sob o pretexto de “eficiência”, Melo quer entregar esse serviço essencial à lógica do lucro. Mas como confiar no interesse privado para cuidar de enchentes, saneamento e abastecimento, quando os objetivos são financeiros? O DMAE deveria ser fortalecido, não enfraquecido, especialmente em tempos de crise climática, onde a gestão hídrica precisa ser estratégica, técnica e voltada ao bem público.

   Enquanto isso, o governador Eduardo Leite segue a mesma linha: desmontou a Fundação Zoobotânica, enfraqueceu a FEPAM, flexibilizou o Código Ambiental e acelerou licenciamentos que favorecem grandes empreendimentos e atividades altamente impactantes, como mineração e expansão urbana sobre áreas frágeis.

    A soma dessas escolhas tem nome: colapso ambiental urbano.

   E a conta está vindo em forma de enchentes cada vez mais frequentes, intensas e destrutivas.

   Enquanto a UFRGS e outras instituições científicas alertam há anos sobre a necessidade de preservar áreas de alagamento, reforçar diques, manter vegetação nativa e repensar a ocupação urbana, o poder público segue apostando em ações emergenciais mal planejadas — sem foco real em prevenção.

   O que adianta milhões em verbas federais para “reconstrução” se continuam reconstruindo sobre o erro?

  O que adianta abrir canal de doações e helicópteros para salvar famílias, se ao mesmo tempo se aprova a construção de condomínios de luxo em áreas de várzea?

  Sem investimento estruturado em prevenção, sem fortalecer órgãos públicos como o DMAE, e sem ouvir a ciência, o Rio Grande do Sul continuará mergulhado — literalmente — em tragédias anunciadas.

   As mudanças climáticas estão apenas começando a mostrar seu impacto. Ou os governos mudam sua lógica de curto prazo e lucro imediato, ou a realidade será ainda mais dura.

  A crise climática não perdoa improvisos. E ela já está batendo à porta.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Escrever histórias é um ato de resistência

 

          Esta semana vivi uma daquelas situações que nos pegam desprevenidos e, sem aviso, nos empurram para dentro de reflexões profundas. O filho de uma conhecida recebeu da professora a missão de entrevistar uma “influencer”. E, para surpresa geral da nação ― inclusive a minha ―, ele me escolheu. Justo eu, que tenho verdadeira aversão a esse rótulo que virou febre nas redes sociais e que nem sequer tenho um número expressivo de seguidores. Expliquei, com a maior calma do mundo, que não tenho esse poder de influenciar ninguém… e nem quero. Minha influência acontece de forma silenciosa, por meio da escrita, que busca informar, despertar, provocar. Mas o jovem insistiu. Quis saber como me tornei escritora, o que era preciso fazer para publicar livros. E foi ali, enquanto respondia às perguntas do garoto, aprendiz de repórter, que me dei conta: o sonho de escrever já morava em mim desde tenra idade. Eu é que o havia empurrado para longe, como quem lança algo ao espaço, porque parecia muito distante da minha realidade ― e, de fato, era.

    Hoje, mesmo com um livro publicado e outro a caminho pela mesma editora, ainda luto contra a síndrome da impostora. Sinto-me orbitando astros literários muito mais relevantes, consolidados e experientes.

    E, sinceramente, ser influencer nunca esteve nos meus planos, talvez porque a superficialidade de certos conteúdos me incomode. Ainda que haja criadores comprometidos com o saber, são raros os que realmente levam informação transformadora ao público.

      Durante a entrevista, percebi também que muita gente ainda tem uma visão utópica e poética — e, por vezes, elitista — do que é ser escritora. Como se fosse um título revestido pelo verniz do glamour, quase um dom místico. Escrever, na verdade, é trabalho. Exige entrega, observação aguçada, sensibilidade crítica, disciplina, vocabulário… e, acima de tudo, a coragem de narrar algo com propósito. É isso que tento imprimir nas minhas obras: objetividade e comprometimento com o leitor.

    E, sejamos sinceros: vivemos tempos sombrios. Época em que os livros viraram objetos decorativos — ou, pior ainda, relíquias abandonadas. Ainda assim, tomados por uma obstinação que beira a teimosia, alguns de nós seguem escrevendo. Como se cumpríssemos uma missão silenciosa, quase cármica. Movidos por uma força inexplicável, gestamos histórias que insistem em se formar e, quando finalmente nascem, gritam por atenção ― como alerta a alguém, em algum lugar.   

      Não há holofotes sobre aquele que escreve. A luz que nos guia vem de dentro e, às vezes, se apaga pela frustração de não conseguir atingir o público-alvo. O autor é o bem e o mal, o anjo e o demônio, a morte e o renascimento. Mergulhar nesse ciclo de Samsara ficcional tem seus efeitos colaterais: insônia, angústia, apego, revolta, sensação de impotência, êxtase criativo… até que a justiça tão desejada — seja no enredo ou na vida — finalmente se faça presente. Por esse percurso sinuoso, caminham de mãos dadas com o escritor a autocobrança, a rejeição e um amor persistente pelo ofício.

     E quando — e se — uma editora de prestígio aposta no nosso trabalho, sentimos, por instantes, uma euforia quase secreta. Um breve estado de graça que poucos compreendem e muitos subestimam. Dói perceber que, enquanto isso, as prateleiras se enchem de poeira — não por falta de tempo, mas por descaso. Vivemos numa sociedade que despreza o conhecimento e celebra o vazio, que troca livros por feeds, pensamento por performance, conteúdo por curtidas.

        E aí, tentando resumir tudo isso para o meu jovem entrevistador, eu disse: ser escritora hoje talvez só não seja mais difícil do que ser professora, pois ambas tecem alicerces invisíveis numa sociedade que celebra o vazio, valoriza o que reluz instantaneamente e escolhe o ruído em vez da reflexão.

      Mas seguimos. Porque, de alguma forma, contar histórias ainda é o modo mais bonito que encontrei de resistir — e, talvez, de existir, fazendo valer a minha luta por justiça social.