sexta-feira, 27 de junho de 2025

De lágrimas a alagamentos: Canoas entre a nova ameaça de enchente e a velha negligência política

 


    Já faz um longo tempo que venho adiando esta publicação — mais precisamente, um ano. Não por falta de assunto, mas por falta de coragem. Ainda é muito doloroso falar sobre a enchente da qual cerca de 60% dos moradores da cidade de Canoas — estatística da qual faço parte — foram vítimas.

    E quando eu acreditava que a dor de perder tudo havia sido levada pelas águas lamacentas do passado recente, fui novamente surpreendida pela possibilidade de sermos, mais uma vez, atingidos pela força da correnteza dos rios que descem do centro do estado para desaguar nos já saturados Guaíba, Rio dos Sinos e Gravataí. A situação pode se agravar ainda mais com a grande quantidade de chuva prevista para os próximos dois dias.

  Todo esse volume certamente afetará os níveis de água e pode causar novas inundações, especialmente na parte oeste do município, cuja cota já está acima do normal. Mas, para não continuar “chovendo no molhado”, vou me ater ao lado psicológico dos habitantes — pessoas desanimadas, inseguras e, em sua maioria, completamente descrentes nos políticos que, de forma irresponsável, pouco ou nada fizeram para evitar que outra catástrofe volte a se repetir.

   Mal conseguimos nos recuperar do trauma de uma tragédia jamais imaginada, e agora estamos diante de outro desafio: em quem acreditar?

  A Defesa Civil emite alertas; a prefeitura afirma que devemos ficar atentos, mas garante que não há risco de algo tão catastrófico quanto o ocorrido no ano passado. Enquanto isso, vemos um embate entre os alarmistas que espalham pânico e os otimistas que tentam suavizar a situação com frases de efeito.

  No meio dessa queda de braço estamos nós, que já começamos a planejar uma possível fuga. Mas fugir... para onde? Montar uma logística de evacuação quando se tem cães, gatos, doentes, crianças e idosos é um verdadeiro dilema. Abrigos? E onde deixar os móveis e eletrodomésticos conquistados com tanto esforço ao longo de mais um ano de luta?

  Poucos imaginam o desespero dessa parcela da população, que representa aproximadamente 60% dos 350 mil habitantes, que vivem nos bairros Rio Branco, Fátima, Mato Grande, Harmonia, Mathias Velho, São Luiz e Industrial. Nessas regiões, arroios e rios cruzam os limites urbanos, contando com um sistema de diques e bombas de drenagem — que, até poucos anos atrás, parecia suficiente.

  Contudo, a especulação imobiliária desenfreada e a ganância de políticos e empresários resultaram no fechamento de nascentes e no desmatamento. Já uma parte da população também tem sua parcela de culpa, ao descartar de modo irresponsável o lixo doméstico e da construção civil em locais inapropriados, o que leva ao entupimento das bocas de lobo. Tudo isso contribui para a situação miserável e angustiante que enfrentamos hoje.

  A chuva, que um dia embalava nossos sonhos, agora provoca insônia e pânico. Mesmo aqueles que moram longe dos rios sentem a insegurança corroer qualquer desejo de continuar recomeçando. E mesmo que eu não volte a perder tudo, não sinto alívio. Porque saber que o outro está passando pelo que eu já passei só me traz apreensão e tristeza.

  No fim das contas, só podemos contar com quem está na mesma situação — na mesma Canoas furada, remando contra a correnteza da negligência e da falta de responsabilidade com o meio ambiente.
                        E assim seguimos... enxugando gelo.

terça-feira, 24 de junho de 2025

Grito Sem Voz: A literatura como escudo para quem não pode se defender

    
    Foi com revolta e tristeza que, em um intervalo inferior a um mês, li algumas notícias envolvendo crianças e adolescentes vítimas de violência sexual na cidade onde moro, que conta com uma população de cerca de 350 mil habitantes.

   Para quem me conhece, não é novidade que venho alertando sobre o perigo de ignorarmos o grito silencioso dos inocentes.
Vivemos tempos em que fake news são rapidamente validadas por quem só acredita no que lhe convém — enquanto verdades dolorosas continuam sendo “varridas” para debaixo do tapete. Até quando vamos permitir que essa covardia siga destruindo a vida de quem nem sempre consegue se defender?

   Como autora de dois livros que tratam, com responsabilidade e sensibilidade, de um tema tão doloroso quanto necessário, faço uma pergunta urgente: por que ainda não houve uma mobilização consistente para oferecer ao público infantojuvenil a principal defesa contra abusadores? O conhecimento.

   Diante disso, afirmo, convicta, que falar sobre esse assunto em casa e na escola é necessário e urgente. Precisamos criar espaços de diálogo que permitam que crianças e adolescentes se expressem com liberdade e segurança.

   Por isso, tenho me dedicado à criação de releituras contemporâneas inspiradas nos contos dos Irmãos Grimm, com o objetivo de me aproximar do público jovem — como forma de levar luz à escuridão que permeia a falta de informação, gerada pela ignorância de quem teme a verdade.

   Assim nasceu Chapeuzinho, Lobos Usam Internet, publicado pela Editora Sulina. Ainda este ano, lançarei Disque 100 – João e Maria: Muito além do conto de fadas, também pela Sulina, com previsão de lançamento oficial na Feira do Livro de Porto Alegre. Ambos os livros têm como intuito gerar debate e trazer um sopro de conhecimento a quem precisa.

  Com linguagem acessível e poética, a nova obra retrata uma realidade dura — mas, infelizmente, comum — que precisa ser enfrentada com coragem e informação.

Pais, professores, tios, avós, vizinhos, amigos: ajudem a romper o silêncio. Leiam. Conversem. Ensinem. Somente o conhecimento pode proteger os mais vulneráveis.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

A crise climática não perdoa governos que desmontam o meio ambiente...

       Agência Brasil/Gilvan Rocha
 
Vista da cidade inundada de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Texto: Amanda Werlang

       As enchentes históricas que atingiram o Rio Grande do Sul — com cenas de cidades submersas, mortes e milhares de desabrigados — não são apenas obra da natureza, mas resultado direto de decisões políticas que ignoraram o meio ambiente e a ciência.

    Em Porto Alegre, o prefeito Sebastião Melo vem conduzindo uma gestão marcada pela entrega de bens públicos ao setor privado e pelo desmonte das estruturas ambientais e urbanísticas da cidade. Um exemplo grave disso é a tentativa de privatização do DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgotos) — órgão que historicamente cuida da água e do esgoto da capital com caráter público e técnico.

    Sob o pretexto de “eficiência”, Melo quer entregar esse serviço essencial à lógica do lucro. Mas como confiar no interesse privado para cuidar de enchentes, saneamento e abastecimento, quando os objetivos são financeiros? O DMAE deveria ser fortalecido, não enfraquecido, especialmente em tempos de crise climática, onde a gestão hídrica precisa ser estratégica, técnica e voltada ao bem público.

   Enquanto isso, o governador Eduardo Leite segue a mesma linha: desmontou a Fundação Zoobotânica, enfraqueceu a FEPAM, flexibilizou o Código Ambiental e acelerou licenciamentos que favorecem grandes empreendimentos e atividades altamente impactantes, como mineração e expansão urbana sobre áreas frágeis.

    A soma dessas escolhas tem nome: colapso ambiental urbano.

   E a conta está vindo em forma de enchentes cada vez mais frequentes, intensas e destrutivas.

   Enquanto a UFRGS e outras instituições científicas alertam há anos sobre a necessidade de preservar áreas de alagamento, reforçar diques, manter vegetação nativa e repensar a ocupação urbana, o poder público segue apostando em ações emergenciais mal planejadas — sem foco real em prevenção.

   O que adianta milhões em verbas federais para “reconstrução” se continuam reconstruindo sobre o erro?

  O que adianta abrir canal de doações e helicópteros para salvar famílias, se ao mesmo tempo se aprova a construção de condomínios de luxo em áreas de várzea?

  Sem investimento estruturado em prevenção, sem fortalecer órgãos públicos como o DMAE, e sem ouvir a ciência, o Rio Grande do Sul continuará mergulhado — literalmente — em tragédias anunciadas.

   As mudanças climáticas estão apenas começando a mostrar seu impacto. Ou os governos mudam sua lógica de curto prazo e lucro imediato, ou a realidade será ainda mais dura.

  A crise climática não perdoa improvisos. E ela já está batendo à porta.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Escrever histórias é um ato de resistência

 

          Esta semana vivi uma daquelas situações que nos pegam desprevenidos e, sem aviso, nos empurram para dentro de reflexões profundas. O filho de uma conhecida recebeu da professora a missão de entrevistar uma “influencer”. E, para surpresa geral da nação ― inclusive a minha ―, ele me escolheu. Justo eu, que tenho verdadeira aversão a esse rótulo que virou febre nas redes sociais e que nem sequer tenho um número expressivo de seguidores. Expliquei, com a maior calma do mundo, que não tenho esse poder de influenciar ninguém… e nem quero. Minha influência acontece de forma silenciosa, por meio da escrita, que busca informar, despertar, provocar. Mas o jovem insistiu. Quis saber como me tornei escritora, o que era preciso fazer para publicar livros. E foi ali, enquanto respondia às perguntas do garoto, aprendiz de repórter, que me dei conta: o sonho de escrever já morava em mim desde tenra idade. Eu é que o havia empurrado para longe, como quem lança algo ao espaço, porque parecia muito distante da minha realidade ― e, de fato, era.

    Hoje, mesmo com um livro publicado e outro a caminho pela mesma editora, ainda luto contra a síndrome da impostora. Sinto-me orbitando astros literários muito mais relevantes, consolidados e experientes.

    E, sinceramente, ser influencer nunca esteve nos meus planos, talvez porque a superficialidade de certos conteúdos me incomode. Ainda que haja criadores comprometidos com o saber, são raros os que realmente levam informação transformadora ao público.

      Durante a entrevista, percebi também que muita gente ainda tem uma visão utópica e poética — e, por vezes, elitista — do que é ser escritora. Como se fosse um título revestido pelo verniz do glamour, quase um dom místico. Escrever, na verdade, é trabalho. Exige entrega, observação aguçada, sensibilidade crítica, disciplina, vocabulário… e, acima de tudo, a coragem de narrar algo com propósito. É isso que tento imprimir nas minhas obras: objetividade e comprometimento com o leitor.

    E, sejamos sinceros: vivemos tempos sombrios. Época em que os livros viraram objetos decorativos — ou, pior ainda, relíquias abandonadas. Ainda assim, tomados por uma obstinação que beira a teimosia, alguns de nós seguem escrevendo. Como se cumpríssemos uma missão silenciosa, quase cármica. Movidos por uma força inexplicável, gestamos histórias que insistem em se formar e, quando finalmente nascem, gritam por atenção ― como alerta a alguém, em algum lugar.   

      Não há holofotes sobre aquele que escreve. A luz que nos guia vem de dentro e, às vezes, se apaga pela frustração de não conseguir atingir o público-alvo. O autor é o bem e o mal, o anjo e o demônio, a morte e o renascimento. Mergulhar nesse ciclo de Samsara ficcional tem seus efeitos colaterais: insônia, angústia, apego, revolta, sensação de impotência, êxtase criativo… até que a justiça tão desejada — seja no enredo ou na vida — finalmente se faça presente. Por esse percurso sinuoso, caminham de mãos dadas com o escritor a autocobrança, a rejeição e um amor persistente pelo ofício.

     E quando — e se — uma editora de prestígio aposta no nosso trabalho, sentimos, por instantes, uma euforia quase secreta. Um breve estado de graça que poucos compreendem e muitos subestimam. Dói perceber que, enquanto isso, as prateleiras se enchem de poeira — não por falta de tempo, mas por descaso. Vivemos numa sociedade que despreza o conhecimento e celebra o vazio, que troca livros por feeds, pensamento por performance, conteúdo por curtidas.

        E aí, tentando resumir tudo isso para o meu jovem entrevistador, eu disse: ser escritora hoje talvez só não seja mais difícil do que ser professora, pois ambas tecem alicerces invisíveis numa sociedade que celebra o vazio, valoriza o que reluz instantaneamente e escolhe o ruído em vez da reflexão.

      Mas seguimos. Porque, de alguma forma, contar histórias ainda é o modo mais bonito que encontrei de resistir — e, talvez, de existir, fazendo valer a minha luta por justiça social.