sábado, 27 de agosto de 2022


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             Rosaide Gomes



ADORÁVEIS

BASTARDOS


A vida imita a arte


Essa história traz uma abordagem contundente sobre fé e
fanatismo. Um romance adulto que visa conduzir o prezado
leitor a adentrar em um mundo ficcional, que bem poderia ser
real, quando faz uma importante denúncia contra a pedofilia, a
exploração sexual, o incesto e o preconceito, de modo geral.
E, por acreditar que a leitura ajuda no desenvolvimento
social e cultural, além de fomentar o senso crítico individual,
quando tem o intuito de transmitir conhecimento e aumentar o
poder de argumentação, eu me lanço na aventura de tentar
conduzir o caro leitor a extrair das páginas desse livro, à
medida que venha se aventurar pelos seus capítulos, as
mensagens subliminares que deixei em cada palavra, linha,
frase, parágrafo... Sendo assim, espero que você possa se
entregar à leitura com a mesma paixão com que eu escrevi esse
romance contemporâneo.
@rosaidegomes

rosaide.gomes@hotmail.com

Por vezes ganhamos mais experiência com o que lemos do 

que com o que vemos”. Miguel de Cervantes (1547-1616)



Dedicatória e Agradecimento


Essa obra faz parte de uma trilogia composta por três
livros, e levou cerca de quatro anos para ser concluída e eu
dedico esse primeiro volume às mulheres maravilhosas que se
dispuseram a ler seus primeiros capítulos, mesmo tendo elas
suas vidas atribuladas, devido as suas profissões diversificadas:
bancárias, psicóloga, enfermeiras, pedagoga e escriturárias, fato
que exigiu delas tempo e comprometimento. E foi diante dos
seus contundentes e generosos pareceres que eu me fortaleci,
ainda mais, tomando coragem para publicar ADORÁVEIS
BASTARDOS, A Vida Imita a Arte, de modo independente.
A vocês, minhas amigas guerreiras que, de modo
carinhoso, me incentivaram, apoiaram e que torcem para esse
livro chegar até aqueles que apreciam uma boa história, dentro
desse gênero literário, eu expresso a minha eterna gratidão:
Tainã Flores Telles (Tai); Maria Ivone Junges; Jânia A. M. G. da
Rosa; Débora Lopes Gianoni; Joelma Gomes e Neusa Teresinha
Alves (Neca). A minha filha: Amanda Werlang, que me ajudou a
fazer o design dessa publicação, deixo aqui registrado o meu
muito obrigada.
Mãe querida, foram as tuas histórias, contadas quando
eu era criança, que acalentaram o meu sonho de me tornar
uma “escritora”. Te amo, eternamente.

______________________________________________


PRÓLOGO



Santa Dinfna

Com os cabelos bagunçados e o corpo rígido pela posição que o marido a obrigara a permanecer, de forma punitiva, Alícia girou a cabeça para capturar um pouco mais da plenitude matinal, emanada pelo sol que derramava raios luminosos sobre a cama. De onde estava podia ouvir o barulho da água que caía do chuveiro. Ela soltou uma lufada de ar ao lembrar que enquanto ele cantarolava embaixo do chuveiro, ela, mais uma vez, chegaria atrasada no trabalho. Ainda assim não daria o braço a torcer. Flexionou os músculos contraídos e andou vagarosamente a fim de espiar através da porta entreaberta. Sem que desse tempo de voltar ao castigo, o viu avançar rápido em sua direção, totalmente nu. Soltou um grito quando ele, com os cabelos e o corpo molhados, respingando água para todo lado, pulou em cima dela e lhe deu um tapa na bunda.

— Ra! Ra!

Ela riu e o enlaçou pelo pescoço.

— Aiii... desisto! Aceito a minha punição, então peça o que quiser.

Ele esboçou um sorriso malicioso e a sentou no colo.

— Pupila. Essa seria a resposta, certa. Ah, mas, como você só pensa em sacanagem, deduziu logo naquilo que mais te dá prazer... safadinha. – sussurrou ele, com a boca colada no pescoço dela.

Alícia revirou os olhos ao perceber a ereção nada sutil. Como se a maratona sexual da noite anterior não tivesse sido suficiente para aplacar todo o fogo daquele homem lindo. Ainda que ela adorasse se deixar arder naquela fogueira.

— Ah, não valeu! Essa foi outra das suas charadas com sentido dúbio, só para me fazer perder. Você é um caso perdido, senhor meu marido.

Sorrindo, ele respondeu dentro da boca que afogava com beijos.

— Não tenho culpa se estar dentro de você me faz perder uma das cabeças, senhora minha esposa.

Ela cerrou o punho e o bateu contra a própria testa.

— Você precisa ser estudado pela Nasa. Mas, agora que eu sei que a pupila é o único órgão do homem que devidamente estimulado é capaz de aumentar mais de sete vezes de tamanho, acabou a minha esperança. – observou a mulher ao dar um tapa na mão atrevida que tentava puxar para baixo seu short doll preto com renda nas laterais.

— Saiba a senhora que eu estou bem acima da média. – retrucou o homem, irônico.

— Convencido.

Em um sussurro engasgado, ele falou ao enfiar dois dedos dentro dela:

— Você está toda molhada pra mim, meu amor.

— Isso é um eufemismo, já que você saiu encharcado, direto do banho e pulou em cima de mim. – lembrou ela, antes de disparar para o closet.

Um barulho de buzina fez a mulher entender que perderia a carona caso continuasse imersa naquele colóquio amoroso.

— Meu pai vai acabar nos despedindo, por justa causa. – avisou ela ao levantar o cabelo para que o homem, que a observava através do espelho, a ajudasse a colocar o delicado relicário de ouro.

Após minutos de indecisão, finalmente o vestido vermelho, com estreito cinto preto, ganhou a preferência. O marido, atento, a beijou na nuca e depois, com um gesto, soltou a presilha que mantinha os cabelos presos e os deixou caírem sobre os ombros descobertos.

— Linda, cada dia mais linda, e só minha, pra sempre. – ele sussurrou ao ouvido dela, antes de virá-la de frente — Querida, preciso dar um pulo em Gramado; volto à noite, alguma preferência por chocolates?

— Desde que você esteja no pacote, qualquer marca serve.

— Garota esperta. – ele deslizou os dedos pelo vestido, abriu o zíper e inclinou a boca para sugar entre as escápulas. Ela estremeceu. — Agora fique com essa para me responder quando eu retornar: por que o Adão não tinha sogra?

A esposa deu de ombros e se voltou ao seu reflexo no espelho para passar batom.

— Porque ele morava no paraíso. – ela respondeu enquanto corrigia as imperfeições sobre os lábios bem delineados e ainda túrgidos pela noite permeada de beijos molhados — Depois dessa, pode ir dizendo adeus a sua boa reputação de genro maravilhoso, já que eu duvido muito que a sua querida sogrinha volte a te dar qualquer crédito ou atenção.

Ele jogou a cabeça pra trás e soltou uma gargalhada antes de lhe ofertar um beijo casto sobre a face rosada.

— Shhh... Acho que podemos manter esse segredinho só entre nós, ou alguém certamente não ganhará chocolates.

Ela fez beicinho e suspirou, enquanto ele fechou os olhos e inclinou sua testa tocando na dela.

— Me espere com aquele seu shortinho transparente de renda e com a minha camiseta branca, sem sutiã.

— Nem desconfiava que você costumava usar sutiã com aquela camiseta branca. A vida é mesmo uma caixinha de surpresas.

— Engraçadinha. – ele grunhiu, ao terminar de dar o nó na gravata — Amor, não se esqueça que amanhã à tarde estaremos de folga, já que estudos indicam que meninas são mais propensas a serem concebidas à tarde. E eu mal posso esperar para te fazer ver estrelas vespertinas.

Ela balançou a cabeça em desaprovação, ao vê-lo esfregar as duas mãos.

— E trate de comer frutas que tenham gomos: tangerinas, laranjas... que, segundo a Índia, ajudam na concepção feminina.

— Eu li em uma dessas revistas especializadas em fecundação que os espermatozoides XX são mais lentos que os XY, então teremos que adequar algumas posições. Oh, céus quanto sacrifício eu sou obrigado a fazer em nome da paternidade! – observou ele, ao levar a mão ao peito, de modo dramático.

Alícia revirou os olhos e retrucou com ironia.

— Hmmm... Não seja por isso, posso arrumar alguém que o substitua e que não se oponha ao sacrífico.

Com os olhos escuros ele deu outro tapa na bunda da mulher.

— Aiii... isso doeu e foi indelicado. – ela coçou o local da batida ao fazer uma careta de dor — Troglodita.

— Ah, você nunca tinha reclamado antes do seu homem das cavernas, com um Y gigante e rápido.

— Não fique aí se gabando. O espermatozoide XX até pode ser mais lento, mas é muito mais resistente que o XY. Mulher é foda mesmo, uma verdadeira sobrevivente! – ressaltou ela, depois de cuspir a espuma do creme dental, na pia. — Ah, e vê se libera o X dessa vez, por isso nada de ingerir cafeína!

— Já parei com o café, chocolate e até com mesmo com o chá que a Índia costuma fazer pra mim. Substituí tudo pelo suco verde; e quanto ao Y, manterei todos trancados no saco.

— Ótimo! – disse ela ao conferir os dentes na frente do espelho, então fez uma pequena pausa antes de continuar. — Na verdade, desde que venha com saúde pouco me importa o sexo do bebê. Também já pensei na possibilidade de adotarmos.

Leopoldo se agachou e beijou o ventre da esposa.

— Com você eu não me importaria nem mesmo se tivéssemos coelhinhos, desde que seja eu o pai dos seus filhos, assim como já sou do Bernardo e do Benício.

— Eu sei, querido. – ela depositou um beijo no topo da cabeça dele — Agora, trocando de assunto, você faz questão de participar da festa em comemoração à chegada, aqui na região, dos imigrantes irlandeses?

— Podemos comparecer e ficar até o momento das apresentações ritualísticas das tradições celtas, aquela parte pagã que desperta o seu interesse. E quando todos se encaminharem para a cerimônia católica, dentro da igreja, saímos discretamente.

— Se vamos marcar presença, então, que seja durante todo o evento, porque considero deixar o local antes de terminar as festividades uma total falta de consideração e de educação com aqueles que trabalham com afinco para a sua realização.

Ele a observou com preocupação, ciente de que a espantosa semelhança dela com a Santa Dinfna, padroeira da cidade, costumava lhe causar alguns transtornos, sempre que era obrigada a comparecer a algum evento religioso.

— O padre Francisco me garantiu que a cerimônia desse ano será composta majoritariamente pelos habitantes da cidade, já que a maioria dos devotos fervorosos da padroeira, que costumam importuná-la, por considerá-la a própria reencarnação da Santa, vem de fora do município, e nesse dia não haverá visitação ao santuário, nem vigília. Mas se você me disser que prefere não participar das festividades, podemos viajar, porque é totalmente compreensível o seu trauma, após aquele episódio de fanatismo ocorrido na última vez que participamos da celebração da missa. Ainda me lembro das pessoas gritando...

Ela atalhou, balançando a cabeça freneticamente:

— Pare, por favor, Leopoldo. Não gosto de me lembrar daquela gente desesperada gritando “minha santinha, minha santinha...” Nunca me senti tão impotente e assustada.

— Sinto muito, amor.

— Ah, tudo bem, já passou. Vamos manter o cronograma de comemoração. Determinarei ao departamento pessoal da Tecelagem que compre cestas básicas e brinquedos para serem sorteados durante o evento.

— Ótima ideia. Vai dar tudo certo. Estarei ao seu lado, não se preocupe. – ele depositou um beijo na têmpora dela e a abraçou forte.

— Obrigada, querido. Vamos trabalhar?


CAPÍTULO 1


Já era tarde da noite quando todas as providências finalmente tinham sido tomadas. A família já se preparava para deixar a casa e seguir para a capela mortuária onde o corpo do empresário Darcy Galeno Kavanagh seria velado. Toda a população de Santa Dinfna estava sob o abalo da trágica morte do empresário que sofrera um acidente de helicóptero, na travessia de Angra dos Reis para a capital Carioca. A aeronave colidira contra uma das ilhas e explodiu. Entre os destroços foram encontrados os corpos carbonizados do piloto e do passageiro. O assunto tornara-se recorrente em todos os recantos da região circundante à cidade. No château, a família Kavanagh permanecia em choque com a perda do seu patriarca. A filha, impaciente, aguardava pela chegada do irmão que, segundo fora informada, estava viajando pelo interior do país com sua companhia teatral, por isso não sabia se conseguiria chegar a tempo para o velório. Ela não ignorava o fato de a relação entre o pai e o enteado não ter sido das melhores, já que entre eles a barreira da indiferença, embora invisível, fosse perceptível, ainda assim acreditava que o irmão pudesse querer prestar uma última homenagem ao padrasto. Diante daquela incerteza, Alícia tomou a decisão de seguir com o marido, os filhos e a mãe para a capela mortuária onde daria início a cerimônia fúnebre. Bernardo e Benício permaneciam do lado da avó, já o genro do falecido, que sempre foi muito ligado ao sogro, tinha se refugiado no jardim de inverno para expurgar a dor dilacerante. O semblante fechado e as olheiras indicavam o quanto ele estava sofrendo. A filha, por sua vez, sufocou os soluços, já que a escuridão da noite e a brisa leve que soprava lhe davam o amparo que precisava. Ao mesmo tempo que queria consolar o marido, a mãe e os filhos, notou ser incapaz de ofertar o que não tinha nem mesmo para si, naquele momento. Sentia-se vazia e emocionalmente exaurida. O pai tinha sido a sua base e parte de sua força.

Alícia girou o corpo e viu o marido chorando. Com passos hesitantes se encaminhou até o banco onde ele estava sentado. Sem conseguir dizer uma palavra, deitou a cabeça em seu ombro. O silêncio permaneceu inalterado, porque não tinha nada que ela pudesse fazer para atenuar aquela angústia e o vazio assustador.

***

Diante do caixão lacrado, tudo parecia uma tela borrada por cores escuras, até mesmo as recordações. O cheiro dos lírios, jasmins e rosas invadia o ambiente deixando o ambiente ainda mais lúgubre. Ela se lembrou do que o pai sempre lhe pedira: “Quero que no meu velório os meus amigos estejam rindo acompanhados pelo bom e velho Johnnie Walker, engarrafado. E, depois de brindarem em minha homenagem, que derramem sobre a minha última morada, nesse plano, um copo do âmbar líquido para facilitar que as labaredas no crematório cumpram o seu papel purificador, numa combinação perfeita, atiçada pelo fogo e álcool”, pedido esse que ela atendeu, mesmo considerando uma macabra ironia ter que incinerar o corpo queimado por uma explosão. As risadas dos amigos do falecido, brindando ao homem que jazia dentro do caixão fechado, ecoavam de modo exagerado. Entre os presentes na cerimônia fúnebre encontravam-se notáveis políticos, empresários, fazendeiros, comerciantes, jornalistas, além dos empregados da fazenda e os funcionários da Tecelagem, da Galeria Center e da Mineradora, já que ela decretara luto nas empresas que pertenciam a família por dois dias consecutivos. Pensou que o pai, por seu pragmatismo e humor ácido, não teria concordado com aquela decisão, fazendo uma piada qualquer com a possibilidade de todos eles agradecerem por sua morte, pelo bônus dos dias de folga recebidos. Ela abaixou a cabeça e deixou que as lágrimas rompessem a barragem invisível que tentava conter a dor. A funerária tinha feito um excelente trabalho, expondo várias fotos do empresário renomado ao lado de amigos, da família, dos seus cachorros, dos cavalos, do avião, tudo devidamente espalhado pelo interior da capela, em cavaletes de madeira envernizada. Alícia segurava firme a mão da mãe, que era amparada por Bernardo, neto mais velho. Trajando calça jeans escura, camisa verde de botões, Leopoldo, abatido, ao lado dos dois filhos e do caixão, com o olhar perdido, fitava uma imensa coroa de flores, ornamentada por laços de cetim com as cores da bandeira de sua terra natal, a Irlanda. Mesmo que aquele não fosse um local propício à cobiça do marido alheio, Alícia notou o modo como algumas mulheres lançavam olhares furtivos ao homem de quase um metro e noventa de altura, cabelos loiro escuro e olhos verdes musgo, mas que a ela pareceu, naquele instante, ser somente um menino desamparado, desorientado sem sua máxima referência masculina. E foi assim que teve a certeza que o pai não poderia ter sido mais amado por um filho legítimo do que fora pelo genro. Eles eram unha e carne, sempre unidos. Darcy cumprira o seu papel de pai com louvor; contudo, a filha quase podia jurar que ele tinha se superado na condição de sogro. E quando já se preparava para atravessar a pequena sala sepulcral, ela viu um garoto se aproximar do marido e o enlaçar pela cintura. Mesmo surpreso, Leopoldo instintivamente abraçou o jovem e arregalou os olhos em direção a ela. Diante daquele cenário, a mulher ficou paralisada tentando entender o desenrolar da situação surreal que testemunhava a sua frente, girou o corpo e olhou para a mãe, mas a mulher mais velha virou o pescoço em direção oposta. Aturdida, buscou nos filhos a resposta que procurava, porém eles pareciam tão confusos quanto ela própria perante o que observava. O marido estava estranhamente confuso e constrangido. Seu olhar pesaroso a colocara em alerta máximo, revelando algo que ela não conseguiu captar. O garoto empalidecido se soltou do homem e chegou mais perto do caixão fechado, quando ao passar a mão pela madeira lustrosa do ataúde começou a chorar copiosamente.

— Por que ele tinha que morrer, pai? Não nos deixe vô.

O desabafo, proferido entre soluços, a atingiu como um soco no estômago.

Pai? Vô?”

A tensão no ar era praticamente palpável, enquanto a mulher continuava procurando por resposta no olhar silencioso e angustiante do marido que a encarava imóvel, ao lado de uma coroa de flores. Um murmurinho tomou conta do ambiente. Alícia sentiu a cabeça latejar e seus olhos, já ressecados, pararam de piscar. Seus ouvidos zumbiam, as mãos tremiam, os joelhos e o coração paralisaram. Foi quando pensou na hipótese de reservar uma vaga naquele crematório para si mesma, por imaginar estar à beira de um colapso nervoso. Era impossível tentar descrever o que estava acontecendo dentro do seu peito. E, antes que pudesse processar a tragédia anunciada que se sucedia a sua frente, uma morena, usando um conjunto preto de saia e blazer, com os cabelos lisos amarrados, estilo rabo de cavalo, se aproximou com cautela do garoto e o tirou do lugar, não antes de lançar um olhar intenso sobre homem que continuava amparando o adolescente, que o beijou no rosto ao se despedir. Diante da insólita cena, Alícia sentiu que o chão fugira sob os seus pés, disparando porta afora à procura de ar. E, no jardim, inadvertidamente, procurou por um local ermo, onde pudesse desabar, mas antes que o choro compulsivo ganhasse força, seu estômago protestou e, assim, passou a despejar sobre o canteiro de flores o que nem sequer havia conseguido comer durante o dia. Pior que vomitar era tentar e não conseguir. Durante todo o tempo que se mantivera na parte externa da capela, apenas seus filhos e a governanta foram ao seu encontro, eles não sabiam o que lhe dizer, nenhum deles conhecia o garoto. Já o filho mais velho reconheceu a estranha mulher que levara o garoto embora, como sendo a secretária do advogado da Mineradora. Assim, ela teve a certeza de que tinha sido covardemente enganada. A verdade lhe fora revelada antes que o pai a incinerasse com ele. Leopoldo tinha sido infiel. O marido tinha um filho e uma amante, e o defunto ali velado, além de ter conhecimento da traição, o ajudou a acobertar. Era repugnante saber que tinha sido traída duplamente. Não conseguia saber o que doía mais: a morte do pai ou a sua deslealdade com ela. Porém, entendeu ao se recordar do olhar da mãe, que ela também ajudara a acobertar o caso extraconjugal que o marido parecia manter por tantos anos, já que o garoto aparentava ter a mesma idade dos seus filhos. Uma vez que tinha perdido a coragem para retornar ao interior da capela mortuária, com a boca seca e as engrenagens da mente embaralhadas, ela buscou na bolsa a chave que a levaria para bem longe daquele ambiente onde o seu coração fora ferido de morte.

***

Com as mãos trêmulas sobre o volante e a visão embaçada pelas lágrimas que escorriam sem parar, Alícia pensou que se fosse um pouco mais corajosa lançaria o carro contra a mureta de contenção lateral da rodovia, só para poder dar fim aquele sofrimento de uma vez por todas. Após três horas dirigindo, se deu conta que procurava por uma praia qualquer. Queria afundar os pés na água salgada do mar, com a remota esperança de cura para sua alma dilacerada.

Talvez seja melhor mergulhar de corpo inteiro.”

***

Já amanhecia quando ela chegou à cidade de Torres, respirou fundo e pegou o celular, viu as inúmeras mensagens de texto na caixa de entrada. Resoluta e profundamente magoada, decidiu deletar todas elas, sem nem ao menos se dar o trabalho de ler o que estava escrito, apenas enviou um breve recado aos filhos informando que devido aos últimos acontecimentos tinha decidido viajar em busca de algum lugar que pudesse lhe oferecer dias propícios à reflexão. Conferiu os cartões de crédito na bolsa. Acreditou que a dor que tomava conta do seu corpo se equiparava a uma adaga atravessada nas costas. Tinha sido apunhalada sem nenhuma piedade pelas pessoas que poderia jurar que a amavam. A tristeza de saber que ela e o marido estavam tentando conceber uma menina, enquanto ele mantinha um relacionamento extraconjugal rasgava-lhe as entranhas. A mãe, que se autointitulava uma feiticeira do bem, também havia compactuado com aquela mentira.

Depois de se instalar em um hotel à beira-mar, ela se encarou diante do espelho. Decepcionada consigo mesma, por não ter percebido os sinais de traição, se esbofeteou, se deixando cair encolhida sobre o piso frio de cerâmica, do banheiro.

***

Um dia após a missa de sétimo dia, da morte do pai, Alícia finalmente resolveu que já era hora de voltar para casa. Devido aos últimos acontecimentos, ela já não conseguia evocar uma lembrança muito nítida do homem que julgava ter sido mais leal ao genro do que a própria filha. Ela, durante os dias que permaneceu fora, se negara a atender o telefone e só se comunicava com os filhos através de mensagens de textos. Sentia-se entorpecida. O mundo no qual acreditava já não existia mais. Pensou em largar tudo para trás e se afastar para um lugar bem distante, porém não seria justo agir impulsivamente só por estar à sombra da própria humilhação. Afinal seus filhos não tinham culpa. Era preciso manter-se forte e determinada, embora soubesse que o seu mundo, assim como o castelo de areia que construíra à beira-mar, desmoronara. O ar fresco da primavera soprou seu cabelo bagunçado, e ela inclinou a cabeça para o céu na esperança de que as pesadas nuvens que se formavam lavassem sua alma, imaginou que talvez o universo tivesse reservado uma bomba d’água capaz de fazê-la esquecer sua natureza humana. Um trovão ressoou ao longe, como se estivesse tentando lhe enviar uma mensagem codificada. Morrer atingida por um raio talvez não fosse assim tão ruim. Envergonhada, descartou aquele pensamento permeado pela falta de amor-próprio e vitimismo. Nenhum ser humano deveria colocar sobre o outro tanta responsabilidade pela sua própria felicidade. Ela era mãe, e aquele era o melhor motivo para querer seguir com sua vida em frente.




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